Street Fighter V poderia ser ótimo, mas é game inacabado

Baixa oferta de conteúdo e problemas de conexão ofuscam lançamento. 'SF V' tem versões para PS4 e PC; preço varia entre R$ 100 e R$ 280


Eu não sou um cara competitivo. Nasci tranquilo, cresci assim e até já tentei trabalhar um sangue nos olhos. Mas não dá. Mesmo assim, me considero fã de "Street Fighter". "Super Street Fighter II" foi um dos meus primeiros jogos no Super Nintendo, gastei o dedo batendo (e apanhando) em reuniões nas festas de aniversário e acredito que é bem possível gostar da série sem ser um "freak" dos games de luta.

É claro que já alternamos momentos de amor e ódio. Das humilhações diárias para meu amigo Ozzy, veterano de Guile, àquela única vitória no fim de semana que fazia você esquecer de todo o resto e tentar a sorte mais uma vez. "Street Fighter" sempre teve dessas.

Mas eu achava que esse relacionamento pudesse ter um final permanentemente feliz em "Street Fighter V", lançado na terça-feira (16) para PlayStation 4 e PC.

Existia a promessa de ele ser mais acessível, afinal. Quem sabe não encontrava meu jogo e aparava minhas arestas? Era a motivação que eu precisava, e tenho certeza que muita gente também pensou dessa forma.

Não foi bem assim.

Da forma como foi lançado, "Street Fighter V" é frustrante para novatos e veteranos. Ele é um ótimo game de luta, divertido, versátil e com mecânicas sólidas, mas que acaba soterrado pela baixa oferta de conteúdo e problemas persistentes de conexão. É como se o jogo da Capcom tivesse chegado incompleto, mas com uma etiqueta marcando um preço bem cheio.

A jornada do herói

É de partir o coração ver um título tão bom como esse sendo vendido em um pacote tão precário e abusivo. Porque apesar de fracassar no quesito produto, "Street Fighter V" consegue reformular tudo que foi enraizado pelo game anterior há quase 8 anos sem soar injusto, ajudando os inexperientes e garantindo profundidade suficiente para os dedicados nadarem de braçada.

As V-Triggers, V-Skills e V-Reversals são as grandes responsáveis pelos acertos. Elas são golpes de fácil execução que acionam um status ou comando especial dependendo de cada lutador. Não foram poucas as vezes que surpreendi o tempo de pulo do oponente com o "hadoken" carregado de Ryu, fruto de sua V-Trigger. Ou frustrei um ataque adversário ao rebater uma magia usando a V-Skill de M. Bison.

Dominar as habilidades de todos, por outro lado, leva tempo, o que traz um leque abrangente de estratégias. E como até o "timing" dos movimentos e golpes básicos dos personagens é diferente em relação a "Street Fighter IV", o nível de conhecimento entre jogadores novos e veteranos está relativamente equilibrado aqui.

Com exceção de Zangief, um dos poucos que ainda exigem movimentos maiores que uma meia-lua no controle, vários lutadores se comportam de forma diferente. Charlie Nash, por exemplo, que antes usava golpes "de carregar" e era visto como um clone de Guile, agora solta magias (comandos de quarto de lua). Com isso, ele consegue usar seus chutes especiais para cobrir grandes distâncias na tela com relativa agilidade.

Entre os novatos, F.A.N.G. é o mais complexo e promete causar dor de cabeça. Ele tem golpes pouco ortodoxos e uma capacidade inédita de envenenar os adversários. Já Laura é uma boa escolha para quem gosta de soltar agarrões, enquanto Necalli e Rashid são agressivos e velozes – este último, aliás, tem golpes que lembram bastante Joe Higashi, da série "Fatal Fury".

No geral, com "Street Fighter V" a Capcom tomou decisões que são capazes de fomentar a nova geração de Ryus, Kens e Lauras Matsuda que a série precisa para se manter viva nesse mundão competitivo. É o fácil de aprender, difícil de dominar, aparecendo mais uma vez com sucesso.

Só o tempo dirá se essas mudanças tornaram o game fácil demais, se os veteranos serão capazes de se adaptar ou não. Torneios profissionais acontecerão, e talvez aí saibamos se "SF V" serve para o posto que pertencia ao seu antecessor. O que dá para dizer agora é que ele é divertido, eletrizante e dinâmico. Tudo certo nos combates.

O problema é todo o resto.

Um 'ratatataruken' só não faz verão

Enquanto escrevia esse texto, na noite de quinta-feira (18), os modos online de "Street Fighter V" ainda tinham inconsistências. Nos 10 dias que passei jogando, antes e após o lançamento oficial do game, enfrentei vários problemas de conexão aos servidores e levei minutos para encontrar um único oponente para uma partida ranqueada.

Na madrugada de quinta (18), passei por momentos raivosos de "lag", que é aquele atraso entre o que está acontecendo no jogo e o que você vê na tela. Senti o sabor da vitória ser tirado várias vezes da minha boca apenas porque, sei lá, ~conexões~.

É inaceitável um game desse porte, com tantas fases de teste anteriores, que quer construir um cenário forte e competitivo pela internet, ser lançado assim. Mas até aí, parece que virou regra aceitar esse tipo de defeito no lançamento de um jogo multiplayer.

O pior é que tudo isso até passaria batido, já que o meu desempenho pífio no ambiente online era esperado. Era justamente isso que eu buscava corrigir com "Street Fighter V": só precisava das ferramentas para treinar minhas novas habilidades e me preparar para o selvagem ambiente multiplayer, a fronteira final dos games de luta.

Então beleza, vamos jogar sozinho e.... nada. Não há opções. Não existe um modo "arcade", aquele basicão, em que você enfrenta vários oponentes, depois um chefe e assiste a um final diferente para cada lutador.

O "modo história" disponível neste momento é patético, um plano de fundo irrisório de cada personagem onde você disputa três ou quatro lutas sem desafio algum – ah, você descobre que a brasileira Laura Matsuda gosta de pagar churrascos para seus adversários (???).

O verdadeiro modo história, que irá interligar a história de todos os lutadores, está prometido para uma atualização gratuita em junho. O modo de desafios, que trará testes para ajudar a aprender novas combinações e manhas, chega só em março.

É possível encarar o enfadonho modo sobrevivência numa tentativa de acumular o dinheiro virtual Fight Money, que pode ser usado para comprar roupas e novos lutadores na loja virtual de "Street Fighter V"... que também só abre no mês que vem. Ah, e se você estiver desconectado da internet, desencana: sem uma conexão é impossível acumular dinheiro... que de qualquer forma é inútil, por enquanto.

OU SEJA: a única forma de melhorar em "Street Fighter V", hoje, é no modo treinamento, um lugar que não traz motivação alguma para o jogador iniciante seguir na luta. Você até poderia me chamar de "noob", falar para engolir o choro e ir para as partidas online. Mas além de eu correr o risco dessa experiência canibalizar minha vontade de jogar graças ao meu despreparo, não há garantia que o ambiente multiplayer irá funcionar como devia, pelo menos por enquanto.

A Capcom lançou uma versão inacabada de "Street Fighter V". Planejar o lançamento de conteúdos a médio prazo é uma coisa, com passes de temporada, ajustes nos lutadores, sem versões "Super", "Ultra", etc. Estabelecer a base do que a empresa vê como sua plataforma online e pedir compreensão enquanto ajustes são feitos é outra, totalmente justa.

Mas o que a Capcom fez foi corporatizar o "early access", um modelo de negócios que se popularizou no Steam justamente com o objetivo contrário: ajudar games menores ainda em produção a juntar verba e, ao mesmo tempo, coletar "inputs" diretamente da opinião pública. A diferença aqui é que "Street Fighter V" está bem longe de custar o preço de um jogo do tipo. Nos PCs, ele sai por R$ 100. No PlayStation 4, chega a exorbitantes R$ 280.

Ao jogar "Street Fighter V", o modelo do novo "Hitman" não soa estranho. Com o intuito de atrair mais público para um jogo AAA (que é mais caro), a Square Enix fatiou o game em várias etapas e cobra mais barato pela primeira delas. O resto sai ao longo do ano, junto do "feedback" dos jogadores.

A Capcom deveria ter tomado decisão similar. Porque da forma que "Street Fighter V" está, vale mais a pena esperar pelo que vai acontecer com o game de luta antes de pensar em gastar o seu dinheiro.

Da forma como foi lançado na terça (16), "Street Fighter V" é apenas a planta do prédio que poderá vir a se tornar um dia. Um projeto rabiscado a lápis preto em que você consegue ver onde ficam os quartos, a sala de estar e o banheiro, mas que não mostra todos os ambientes conectados entre si. E que exige pagamento à vista apenas para visitar o apartamento – que nem mobiliado está.

G1

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