O Padre Rebelde

Defensor das propriedades da Igreja Católica em Rio Verde, Padre Mariano, primeiro vigário e autor da ordem de construção da Igreja São Sebastião, teve seu túmulo redescoberto após 80 anos


O transcorrer da reforma na Igreja São Sebastião tem revelado mais do que os sinais do tempo, como paredes corroídas e um teto que, como querem os católicos, só não havia caído por força do santo padroeiro do município. Os reparos estruturais e de estilo no templo mais antigo de Rio Verde desvendaram o que era uma incógnita até mesmo para muitos religiosos: o local exato da sepultura de Padre Mariano Ignácio de Souza, enterrado no templo no dia 23 de março de 1917. Foram precisos oitenta anos para que - praticamente por acaso – os trabalhadores da reforma iniciada em abril deste ano encontrassem, logo atrás do altar e sob um piso de cimento, o sepulcro do primeiro pároco da igreja e autor da ordem de sua construção em 1907.

Designado para a Freguesia de Nossa Senhora das Dores do Rio Verde em 1887 e dono do nome da praça localizada em frente à basílica, o padre figura como uma das figuras mais autênticas nos 159 anos de história do município. Testemunhas de um passado distante no tempo, como Maria Rosa de Jesus, de 106 anos, que recebeu dele o batismo e presente em seu sepultamento, relatam que o homem protagonizou inúmeros causos, mesmo depois de sua morte. Filha de um dos oleiros responsáveis por uma grande parte do que foi construído na pequena cidade de então e neta de uma das primeiras escravas libertas no final do século 19 na região, ela se recorda que o padre vivia em uma chácara onde hoje existe o campus da Fesurv - Universidade de Rio Verde. Segundo ela, muita gente evitava transitar perto do lugar por ter ouvido histórias de aparições do religioso. Outros garantiam ter se deparado com a imagem fantasmagórica de seu caixão em outras localidades, como beiras de rios ou próximo da igreja.

Se mesmo depois de morto o antigo pároco da São Sebastião foi capaz de gerar polêmica, em vida foi ainda mais intrigante. Não somente por ter quebrado costumes do celibato, mas também de sua época. Padre Mariano viveu em matrimônio com duas mulheres ao mesmo tempo: Joaquina Alvez Viana, conhecida vulgarmente como “Sá” Joaquina, e Ignês Pauliciana Ribeiro, ambas notórias na comunidade por serem extraordinariamente gordas e altas. De acordo com o relato da hoje centenária rio-verdense, as duas nunca conseguiram ter controle sobre o ciúme e se atracavam em público por questões pequenas. Diante disso, ele acabou tendo de se explicar perante as autoridades eclesiásticas. A pressão resultou no seu licenciamento da Igreja São Sebastião para que fosse reger a Paróquia de São Domingos do Araxá, em Minas Gerais. Conta no livro Goiás, de Victor Coelho de Almeida, que o modo patriarcal de vida dos vigários era prática corrente no sertão. Mas a poligamia talvez não.

Em uma época em que os limites das propriedades eram costumeiramente marcados com sangue, ele sofreu enormes coações por ter enfrentado o poder dos oligarcas em defesa do patrimônio da igreja. No dia em que partia para o exílio mineiro – uma jornada que duraria mais de 30 dias - um rico coronel lhe preparou uma despedida cruel e sarcástica. Conhecido apenas como Souza, ele encomendou a seis de seus capangas uma salva de fogos e todo o tipo de afronta moral para comemorar a derrota do ministro católico. Graças à bondosa interseção de um fazendeiro em favor do padre, o homem acedeu, retirando-se da porta da residência do pároco. Consta que, abatido e chorando sobre o dorso de um cavalo, antes da melancólica viagem padre Mariano rogou uma praga tremenda ao mandão: o coronel haveria de “morrer varado de balas da cabeça aos pés”. Tempos mais tarde, após uma desavença na freguesia, o poderoso encontrou o destino anunciado pelo religioso.

Em outra ocasião, um senhor conhecido como Guido esteve no templo à procura de padre Mariano para que este batizasse uma criança. Sem ter encontrado o pároco em lugar nenhum da cidade, foi achá-lo em uma fazenda. Furioso, ele chegou ao local disposto a dar uma surra no pároco. “Sá” Joaquina, então, atirou-se a seus pés, implorando clemência. Mesmo assim, padre Mariano foi conduzido de volta à igreja sob xingamentos e safanões. Depois de abençoar a criança, recebeu em troca novos desaforos. Diante da circunstância, proferiu mais uma maldição que, conforme garante o autor do livro, teria se cumprido mais tarde: Guido haveria de passar “largos anos entrevado em uma cama”.

Após quase um ano de exílio, padre Mariano retornou a Rio Verde por conta de uma Carta Imperial que o distinguia como vigário colado. Por parte de alguns poderosos, reencontrou um ambiente hostil, mas, no salão da Câmara Municipal, que funcionava à Praça da Matriz (hoje Ricardo Campos), foi realizado um baile para celebrar o acontecimento. Além das ciências comuns dos clérigos, ele era exímio conhecedor do vernáculo e da língua francesa. Formalista, mas dono de rompantes de nervosismo, escreveu, de volta a Minas Gerais, uma carta de desabafo e rancor ao Bispo Dom Eduardo que, entre outras coisas, continha os seguintes dizeres: “Estou cansado do sertão, desanimado das lutas estéreis, onde não se tem menor garantia, nem espiritual, nem pessoal, nem social (...) Lugar disciplinado só para assassinos e valentões bafejados pela perfídia dos velhos capitães mores e sub-régulos responsáveis perante Deus pelas muitíssimas mortes de que foram autores e causadores: é um horror!(...) Pobre Freguesia, qual uma esposa adúltera rejeitada por todos os vigários que infelizmente ali vão esposá-la na boa fé da Freguesia rendosa, (...) obstruindo os caminhos do Senhor!”.

Em sua lápide está escrita a seguinte mensagem: “Padre Mariano Ignácio de Souza.
Vigário desta freguesia (31 annos). Nesta cova está apenas o seu corpo alquebrado pelos annos e pelos desenganos. A sua alma, esta está no coração das crianças pobres que ele amou”.

Por Fernando Machado Borges de Lima - Publicado originalmente em setembro de 2007

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