Brasil se prepara para entrar em 'guerra mundial' do streaming

Amazon e Apple, duas das empresas mais valiosas do mundo, estão de olho em um mercado global que deve valer US$ 124 bilhões até 2025: o de vídeo por streaming sob demanda


Nesta semana, a Apple anunciou planos concretos para a sua entrada no mercado de streaming. O Apple TV+ estreia no Brasil em 1 de novembro custando R$ 9,90 por mês, mesmo preço do recém-reformulado Amazon Prime Video, que agora faz parte do pacote de assinaturas Prime da Amazon no país. 

Amazon e Apple, duas das empresas mais valiosas do mundo, estão de olho em um mercado global que deve valer US$ 124 bilhões até 2025: o de vídeo por streaming sob demanda. Durante anos o setor foi dominado pela Netflix, mas agora gigantes como Disney e Time Warner também querem um pedaço desse bolo. 

A guerra pelo mercado de streaming promete ser mundial, com ramificações e impactos também no Brasil. Por aqui, grandes empresas de mídia como a Globo já tentam concorrer com a Netflix, enquanto gigantes internacionais patinam para entrar no combalido mercado tupiniquim.

"Não tem espaço para todo mundo. Nem aqui, nem em nenhum outro lugar", diz Eldes Mattiuzzo, CEO do canal de TV por assinatura Telecine, que desde o início do ano tem reestruturado suas operações para investir mais em streaming de filmes por meio do aplicativo e website Telecine Play.

Para o executivo, o mercado de streaming não será monopolizado por uma só empresa e o que está em curso no Brasil e no mundo é uma corrida por espaço na cartela de assinaturas dos usuários. Para Mattiuzzo, os brasileiros deverão assinar mais de um streaming ao mesmo tempo.

"A Netflix tem uma posição consolidada em séries, mas tem ainda uma corrida por novelas, conteúdo em forma de capítulos. Nós temos o melhor conteúdo em filmes e queremos ser um hub de cinema", diz.

O Telecine Play é só um dos muitos serviços de streaming brasileiros que correm pelas beiradas na guerra mundial do streaming. No Brasil existem ainda Globoplay, Globosat Play, Play Plus (da TV Record) e Looke, sem falar nos produtos focados em esportes, como Dazn e Premiere FC.

Para Alberto Amparo, especialista em investimentos no exterior da casa de análise financeira Suno Research, a vantagem das empresas brasileiras na disputa com grupos estrangeiros muito mais ricos é, justamente, conhecer o público brasileiro e seus interesses.

"Uma empresa brasileira, para entrar no [mercado do] streaming, vai ter que ter um conteúdo relevante para o brasileiro e que acerte um nicho. Novelas, por exemplo. Um conteúdo que só uma empresa brasileira, por entender as peculiaridades do consumidor brasileiro, vai conseguir produzir. Ela não vai conseguir um market share próximo ao dos gigantes. Mas nesse nicho, você tem um poder de precificação muito forte", diz.

Nichos
Enquanto gigantes de orçamento bilionário como Netflix, Amazon, Apple e Disney brigam para ser o principal provedor de filmes e séries da maioria dos usuários, abre-se um flanco para serviços de nicho, especializados em conteúdos específicos e com alto investimento em curadoria.

A Mubi é um exemplo. A empresa, fundada em 2007 na Europa, desde 2012 fornece um catálogo de filmes selecionados a dedo em festivais de cinema independente do mundo todo pela internet, com o objetivo de trazer o que há de mais inovador e alternativo a um público cinéfilo e exigente.

Após um bom tempo aceitando usuários do Brasil, a Mubi só estreou sua operação efetiva no país, cobrando em reais, em 2018. A assinatura custa R$ 27,90 por mês e oferece um catálogo de 30 filmes, entre curtas e longa-metragens - um novo a cada dia, cada um disponível por até um mês, de clássicos de Michael Haneke e Jean Renoir a novidades da África e da Ásia.

"Nossa estratégia não é focada em ser uma plataforma de bilhões de assinantes", diz Juliana Barbieri, representante do Mubi no Brasil, acrescentando que, no último ano, o número de usuários da plataforma dobrou no país. "É claro que a gente quer crescer, mas a gente nem se compara com outras plataformas como Netflix, Amazon e HBO."

Para a Mubi, o mercado de streaming tem, sim, espaço para serviços de nicho e também grandes empresas de catálogos extensos como Netflix e Amazon, e o consumidor está disposto a assinar mais de uma oferta ao mesmo tempo - incluindo o consumidor brasileiro.

"Aqui no Brasil, temos muitos usuários jovens, estudantes de cinema, interessados em política, história e arte. Mas essas pessoas, ao mesmo tempo, quando chegam em casa, querem ver uma série", diz Juliana. "O brasileiro tem sede por mais conteúdo, mais novidade, e quanto mais opções de conteúdo, melhor para o consumidor."

Fragmentação
Além dos nichos de gênero e formato, outra causa da fragmentação dos serviços de streaming é a quebra do monopólio sobre propriedade intelectual. Mesmo após pagar quase US$ 100 milhões para manter a série "Friends" em seu catálogo até o fim de 2019, a Netflix causou comoção no mercado ao anunciar que perdeu a licença sobre a série para 2020.

A clássica sitcom, um dos maiores sucessos de audiência da Netflix, está de saída do catálogo da empresa a caminho do streaming da Warner, produtora original da série. O mesmo acontece com "The Office", que será exclusivo do streaming da CBS nos EUA, e as séries e filmes da Marvel, que serão exclusividade do Disney+.

Após anos "alugando" suas principais propriedades intelectuais para a Netflix, os grandes estúdios de cinema e TV de Hollywood agora concentram para si seus principais produtos, acirrando a guerra mundial do streaming. Mas, no Brasil, a realidade é bem diferente.

A Netflix ainda não confirmou, por exemplo, se "Friends" vai deixar seu catálogo no mundo inteiro ou só nos EUA - no passado, a empresa já desmentiu boatos de que a série sairia do serviço no Brasil. Isso acontece porque os contratos de exibição de filmes e séries firmados pela Netflix com as produtoras muda de região para região.

A série "Titans", por exemplo, sobre um grupo de jovens super-heróis liderado pelo Robin, é exibida no Brasil como uma série original e exclusiva da Netflix. Mas, nos EUA, sua terra natal, a série é exclusiva do DC Universe, um serviço de streaming de nicho focado em produções baseados nos quadrinhos da DC Comics.

O catálogo de Netflix e Amazon Prime Video é diferente em cada país onde os serviços atuam. No Brasil, por exemplo, "The Office" está com a Amazon e não com a Netflix. No entanto, segundo Felipe Barreto Veiga, sócio do escritório de advocacia BVA, especializado em direito autoral, esses contratos regionais não são invulneráveis.

De acordo com Veiga, o que acontece em casos como o de "Friends" é um "conflito de direitos, de uma licença global contra uma licença local" de exploração do direito autoral. "Não existe nada na lei que exclua uma ou a outra, ou que diga que apenas uma pode existir. A prioridade se dá pelo tempo: quem assinou antes ou quem tem um contrato mais abrangente, é quem conseguiria ter os direitos", diz o advogado.

Outros empecilhos regulatórios barram a fragmentação de serviços de streaming no Brasil. A fusão da Time Warner, dona da HBO, com a operadora norte-americana AT&T, por exemplo, está parada no país por conta de uma lei que impede que empresas de telecomunicações sejam sócias majoritárias de produtoras de conteúdo. E parte da estratégia de streaming da Warner já passa pelo aval da AT&T nos EUA.

Além disso, nem todas essas empresas tëm, necessariamente, algum interesse em se lançar com exclusividade no Brasil. A própria Warner é sócia do Telecine, que detém exclusividade sobre diversos filmes para o mercado brasileiro. E segundo Mattiuzzo, não há indícios de que a sócia esteja disposta a largar o Telecine para apostar em um streaming próprio para os brasileiros, além do HBO Go, por enquanto.

Custo Brasil
A carga tributária e a atual fragilidade da economia brasileira também influenciam na maneira como a guerra do streaming deve se desenrolar no Brasil. Desde 2016, serviços de vídeo sob demanda já pagam imposto sobre serviços (ISS), um tributo municipal que varia de cidade para cidade. Além disso, a reforma tributária em discussão pelo governo de Jair Bolsonaro pode culminar no acréscimo de mais um imposto sobre esses serviços, desta vez federal.

Diante da fraqueza da economia brasileira, que acaba de sair da recessão mais profunda da sua história, e da qual ainda não se recuperou, e também diante da recessão global causada pela guerra comercial entre China e EUA, investidores estrangeiros têm fugido de países emergentes como o Brasil - cenário que também pode impactar os planos de lançamentos de novas plataformas por aqui.

O Disney+, por exemplo, considerado o principal concorrente da Netflix no horizonte, estreia em novembro em diversos países, mas não tem previsão de lançamento no Brasil - a informação que circula pelo mercado é de que os latino-americanos só terão acesso ao serviço na segunda metade de 2020.

Há dúvidas no mercado sobre quantos concorrentes o mercado de streaming nacional aguenta, e também sobre qual é o valor máximo que o consumidor brasileiro consegue pagar para sustentar uma cartela de serviços de diferentes gêneros, formatos e nichos, como apostam os principais competidores.

Mattiuzzo, CEO do Telecine, crê que o brasileiro esteja disposto a gastar até R$ 150 com um leque de diferentes serviços. A análise é de que o preço médio de um pacote básico de TV paga será convertido em plataformas de vídeo pela internet. Mas o executivo deixa claro que não há estudos que confirmem o número.

"Tudo isso é especulação, a gente não sabe como vai ser na prática. Esse movimento [de queda nas assinaturas de TV a cabo junto ao aumento nas assinaturas de streaming] já acontece na Inglaterra. Tudo indica que vai acontecer nos EUA e no Brasil também", afirma Mattiuzzo.

André Kim, sócio e analista de investimentos da GEO Capital, discorda da previsão de que brasileiros gastarão até R$ 150 em produtos de streaming de vídeo. "Para um país que tem salário mínimo de menos de R$ 1.000, esse valor é alto. Não sei se é essa a conta que eu faria. O acesso à banda larga, você não consegue por menos de R$ 60 em uma boa velocidade para assistir a esses conteúdos", diz.

Quase uma unanimidade é a ideia de que o conteúdo é o que vai definir o sucesso ou o fracasso de novas empresas de streaming no Brasil - quais séries, filmes e programas de TV cada concorrente terá para atrair assinantes, seja de nicho, como o Mubi, ou ambicioso como Disney e Netflix.

“Vai existir mais concorrência. Mais empresas entrando, melhor para o consumidor”, diz o CEO do Telecine. “Mas no bolso também não cabe todo mundo. A escolha será por quem tiver o melhor conteúdo. E as três ou quatro empresas que o brasileiro escolher, são as empresas que vão ficar.”

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